Tudo começou na rua. Na Vila Guaíra, em Curitiba, Beatriz Souza, filha da Francisca, jogava bola com os primos. A mãe nunca questionou a paixão pelo futebol, pelo contrário, matriculou Bia em uma escolinha e decidiu ser a maior incentivadora da garota, que hoje brilha no futsal espanhol e vai fazer a estreia pela seleção brasileira, no Torneio de Xanxerê, a partir desta terça-feira.
Convocada para a seleção, Bia Souza inicia nas ruas de Curitiba e hoje brilha na Espanha
— Teve uma vez que precisávamos vender camisas da escolinha, e era R$ 30 cada. Faltavam três dias para a competição, e eu cheguei em casa e tive que falar para a minha mãe que não consegui vender as camisas. Minha mãe trabalhava de diarista na época e pediu salário adiantado para a patroa dela, dona da casa. Minha mãe comprou as camisas que sobraram para eu poder ir para a Taça Paraná. Ela me deu o dinheiro e eu consegui ir viajar – lembra Bia, emocionada, em entrevista ao ge.
— Ela sempre teve um papel fundamental no meu sonho. Teve uma época que ela trabalhou como cozinheira e me dava o cartão de transporte dela para eu ir treinar, e ela ia trabalhar a pé – contou a ala da seleção brasileira.
A mãe e o irmão mais novo, Rafael, que quer cursar medicina na faculdade, sempre foram o combustível de Bia Souza. Ela saiu de casa com 15 anos, depois de passar por escolinhas de Coritiba e Athletico, e pelo futsal do Paraná Clube.

Hoje no Torreblanca, da Espanha, ela comemora a convocação para vestir a amarelinha no Torneio Internacional de Futsal Feminino, que começa nesta terça-feira, em Xanxerê, no Oeste de Santa Catarina. O Brasil estreia com o Marrocos, às 20h, e depois pega Argentina e Paraguai.
— Tive que ter muita disciplina, muito foco. Passei por muita coisa para chegar onde eu cheguei hoje. Não é fácil. Comecei muito nova. Quem vem de onde eu vim tem tudo para desistir, mas eu persisti, continuei, eu fui resiliente, e hoje, Graças a Deus, posso dizer que eu consegui – celebra Bia, dona da camisa 98.

Futsal ou campo?
No esporte, Bia teve Marta como referência, mas depois de jogar futebol e futsal simultaneamente, ela escolheu as quadras.
— Futsal me despertava sensações diferentes. Sempre achei o futsal mais dinâmico. Toco mais vezes na bola. Eu sou muito ágil, rápida, então o futsal me chama mais – explica.
— Eu conheci muitas pessoas na minha trajetória pelos times de Curitiba que me ajudaram. Era uma época difícil para mim. Eu não tinha condições de comprar um tênis de futsal e as mães de outros atletas me ajudaram. Tive muita dificuldade, mas Deus colocou anjos na minha vida.
Depois de passar pelos três principais clubes de Curitiba, Bia passou a encarar o futsal como profissão com 15 anos. Uma proposta para jogar em Telêmaco Borba alimentou o sonho.
— O Paraná tinha um timaço de futsal na época, com atletas de seleção brasileira. Eram referência. Eu já estava um pouco mais velha então já tinha entendimento de onde eu poderia chegar, em quem me inspirar para evoluir e ser melhor. Ali decido que precisava trilha novos caminhos – conta.
— Não era nem “de maior”, minha mãe teve que assinar um documento para deixar outra pessoa responsável por mim – lembra.
De Telêmaco Borba, Bia foi para Foz do Iguaçu antes de sair do Paraná rumo a São Paulo, onde jogou no Marília e no São José.
— Quando mudei para o São José, eu tinha uma prioridade: queria uma bolsa na faculdade. Era importante para mim. Eu não teria condições de pagar uma faculdade. Quis conciliar o futsal, que é o que eu amo fazer, com uma faculdade que tem tudo a ver, educação física – conta.
— Era uma rotina complicada. Eu acordava antes das 6 horas. Como morava em São José dos Campos, precisava passar por Taubaté para ir até Pindamonhangaba, onde eu estudava. Era um trajeto de 40 a 50 minutos. Quando voltava, almoçava, ia para a academia, e treinava a tarde – lembra.
O auge
No São José, Bia teve grande destaque individual e conquistou diversos títulos regionais, que colaboraram para que ela fosse contratada pelo Torreblanca, da Espanha, no final de 2019.
Na temporada 2022/23, Bia foi a artilheira do Campeonato Espanhol de Futsal Feminino, e em 2023/24 foi campeã da Copa da Rainha, o primeiro título da história do Torreblanca com direito à hat-trick (três gols) de Bia Souza na final.

— Estamos entre os grandes da Espanha. São três temporadas seguidas entre os quatro melhores times da Liga. Tem muitas atletas de Seleção, inclusive Amandinha, Ana Luisa, atletas com quem eu aprendo muito no dia a dia. É um time que as pessoas vão ouvir falar muito – conta Bia sobre o Torreblanca.
— Está sendo um dos momentos mais felizes da minha carreira, estar jogando ali, podendo ajudar a minha família financeiramente, dividir quadra com grandes atletas, e ser vista pelo mundo. Hoje eu vivo do futsal, é o que eu sempre sonhei – reforça.
Amanda Crisóstomo, a Amandinha, oito vezes eleita melhor jogadora de futsal do mundo, está no Torreblanca desde 2021. Aos 29 anos, ela também estará no Torneio de Xanxerê.
— Amandinha é uma pessoa incrível e uma atleta incrível. Aprendo com ela todos os dias, mesmo que a gente também brigue muito. Ela está sempre me fazendo crescer, me mostrando um outro ponto de vista, dentro e fora das quadras.
Buscar lá fora
A organização do futsal na Espanha, em calendário, estrutura e investimento, foram argumentos fortes na saída de Bia Souza para o exterior.
— O futsal feminino tem suas lutas. Muita gente mora em alojamento, longe da família, passa dificuldades. Alguns times prometem coisas que não conseguem cumprir. Eu passei por isso. Mas não dá para desistir do sonho. É continuar trabalhando. O futsal feminino é gigante, eu sou prova disso. O Brasil tem muita coisa para melhorar em investimento, mas se é sonho, tem que correr atrás. Deus honra na hora certa.
É mais difícil para as mulheres. É mais suado.
— Bia Souza, sobre o futsal feminino no Brasil
— Falta base, iniciação. Falta visibilidade. Visibilidade é o que falta para um futsal feminino que tem grandes atletas, atletas que brigam todo dia, que batalham todo dia, elas merecem.
Seleção Brasileira
Pela Seleção Brasileira, Bia foi campeã e melhor jogadora do Sul-Americano Sub-20 e vice-campeã mundial com a Seleção Universitária, quando fez parte do all-star team. No torneio de Xanxerê, ela estará pela primeira vez com a seleção adulta, em jogos contra Argentina, Paraguai e Marrocos.
— O nível é alto. Grandes atletas estarão lá, renomadas já no futsal feminino. Teremos referências dentro do futsal em quadra. O Brasil tem uma grande seleção, é incontestável, mas vamos ter que treinar e batalhar muito para, passo a passo, ir ganhando os jogos e ser campeão do torneio.
— Estou com a melhor expectativa. Vou para lá para mostrar meu trabalho, mostrar meu futsal e acima de tudo ser feliz. Minha família vai estar lá também, minha mãe vai conseguir ir, então será um momento muito importante para mim.
No ano passado, o Torneio Internacional de Futsal Feminino foi disputado por seis seleções (Brasil, Bélgica, Bolívia, Paraguai, Uruguai e Venezuela), e o Brasil foi campeão invicto após bater o Paraguai por 4 a 0 na grande final.
