É fim de tarde. Carlos Antônio pega o seu carro velho e atravessa de forma precária toda a cidade de João Pessoa. Quatro dias por semana, vai do Bairro das Indústrias, na saída da cidade, até o bairro São José, distante 20 quilômetros. Deixa o carro na casa da sogra. E ao lado de alguns pais, crianças e adolescentes caminha pelas ruas esburacadas do bairro, atravessa alguns becos escuros e apertados e passa por esgotos a céu aberto. A marcha segue ao lado do Rio Jaguaribe, poluído em toda a sua passagem pelo bairro, e que separa duas realidades distintas. Um cheiro forte acompanha o grupo por boa parte do trajeto. Então, após quase dez minutos de caminhada, eles cruzam a ponte do rio e saem finalmente em uma rua de Manaíra, bairro de classe média alta, onde fica a quadra pública e a céu aberto em que os garotos treinam futsal. Inicialmente, são ofuscados pelas fortes luzes do principal shopping da cidade e se deparam com os altos edifícios do local. A reportagem acompanhou o trajeto do grupo e se surpreendeu com o contraste entre os dois bairros, que já é visto com certa naturalidade pelos moradores. Com cuidado, ao lado dos seus alunos, Carlos Antônio atravessa a rua e anda por mais cinco minutos para continuar o sonho de manter mais de 50 crianças fora do mundo das drogas ensinando a jogar bola através do seu projeto social.
Ex-usuário de crack, Carlos Antônio começa o seu dia às 6h30. Desempregado, usa o próprio carro, um gol 1996, como transporte alternativo para conseguir sustentar a família e o projeto social Associação Craques Fora do Crack, que começou em 2012. Naquele ano, Andinho, como Carlos Antônio é conhecido pelos moradores do bairro São José, ganhou sete coletes de um amigo. Ele decidiu chamar alguns garotos para jogar futsal numa quadra pública de Manaíra, que fica a cerca de um quilômetro do São José. Ali, percebeu que a ação poderia dar a oportunidade aos garotos de terem um futuro diferente.
– No início foi tudo como uma brincadeira. Eles participaram de um amistoso. Eu gostei da ideia e os garotos também. E daí um foi chamando o outro até que o projeto cresceu. Foi quando eu decidi fazer realmente uma escolinha. Eu vi o quanto o São José respira esportes. O bairro não é os vários homicídios, o tráfico de drogas, ou algo deste tipo. O São José é muito mais do que as pessoas em geral pensam – explicou.
A ideia inicial era atender outras modalidades esportivas. Incluir as meninas também. E fora do campo esportivo, promover, por exemplo, cursos profissionalizantes para quem estivesse saindo da fase de adolescência e precisasse ingressar no mercado de trabalho. Nem tudo, contudo, foi implantado. Mas ele diz que continua trabalhando duro.
Para se ter uma ideia, o São José é o bairro que tem a pior arrecadação da capital paraibana. A média salarial é de R$ 469,63, de acordo com o último censo do IBGE, bem abaixo do salário mínimo do país, que é de R$ 788. Uma diferença ainda mais gritante se compararmos com a média do vizinho Manaíra, que é de R$ 3.941,20, valor oito vezes maior.
Os números negativos também aparecem quando se fala na taxa de alfabetização. O bairro está mais uma vez em último lugar, com índice de alfabetização de 78,49%. O primeiro lugar é Aeroclube, com 99,16%. Tudo isto acaba refletindo no cotidiano do bairro, que tem alto índice de crimes registrados.
Projeto nosso de cada dia
Carlos Antônio não sabe dizer quantas crianças e adolescentes já passaram pelo projeto nestes quase quatro anos. Quantas crianças ele já conseguiu salvar do mundo das drogas. Sofre mesmo e não esquece dos três garotos que abandonaram o projeto e hoje são usuários de drogas. Um deles, inclusive, comete crimes no bairro.
– Isto é consequência natural de quem utiliza drogas: cometer furtos e assaltos. Eu fico muito triste de não ter condições de abraçá-los e trazê-los de volta para o caminho certo. Com certeza, todos nós que fazemos um trabalho como esse, queremos sempre o melhor. Seja para as crianças, seja para as suas famílias. E eu tenho a esperança que eles reconheçam e acordem para a vida e para o futuro. Cada criança que a gente tira das ruas e traz para cá, ensinando um caminho melhor, faz do amanhã um dia melhor. Mas infelizmente não conseguimos salvar todos – disse.
A preocupação de Carlos Antônio aumenta ao lembrar dos anos em que foi ele próprio usuário de drogas. Ainda criança, perdeu o pai. Por causa disso, a mãe decidiu se mudar e ir morar em Santa Rita. Ele não quis acompanhá-la e ficou com a irmã. Foi então que aos 13 anos experimentou o primeiro cigarro de maconha. Pouco tempo depois, passou para o crack.
Não tinha vida. Não ia à escola. Nem se importava com nada. Junto com ele, outros garotos faziam o mesmo. Alguns ainda se envolviam com o crime e não duravam muito. Carlos Antônio admite que naquela época o bairro era mais violento. “Um dos piores da capital”, segundo suas palavras. E tudo indicava que ele não teria salvação. Até que um dia foi ajudado por pessoas de uma igreja evangélica, que passou a frequentar. Com esforço, parou de usar drogas. Mudou de vida. Casou, separou, casou de novo e teve dois filhos: um menino e uma menina.
– O jovem que por alguma circunstância se envolve com drogas perde a sua infância. Quero que a minha vida sirva de exemplo para que outros jovens não se envolvam com coisas erradas. Isso não tem outro caminho a não ser cemitério ou cadeia – comentou.
Exemplo que Luiz Henrique Domingues tenta seguir. Aos 16 anos, ele quer realizar o sonho de ser jogador de futebol. Ao contrário da maioria dos jovens que moram no São José, ele vive no bairro Colinas do Sul, no sul de João Pessoa, e gasta duas horas para chegar ao local dos treinos. Mas desistir está totalmente fora de cogitação.
No projeto há alguns anos, ele já participou de competições, viajou para outras cidades e comemorou títulos. Mas também viveu momentos tristes, quando perdeu um dos companheiros para as drogas.
– Tinha um menino que vinha treinar com a gente. Ele começou a se envolver com drogas e nunca mais veio. Já conversei com ele várias vezes, mas ele não me dá ouvidos. Eu fico muito triste, porque eu queria que ele estivesse aqui com essa família. Treinando, correndo atrás do mesmo sonho que eu tenho, mas não adianta – lamentou.
Cada vez mais difícil
Quatro vezes por semana e sempre à noite. São assim os treinos dos alunos do projeto. É então que começam as dificuldades. Eles têm que dividir a quadra de Manaíra com outras escolinhas de futebol, por isso só podem treinar nas segundas-feiras e terças-feiras no local. Já nas quartas-feiras e sextas-feiras, o treino é numa escola pública de Manaíra. Outro problema é para conseguir material esportivo para os garotos. Muitos apelam para os próprios pais, pobres, para ter o necessário para entrar em quadra.
Mas o mais difícil é a falta de apoio financeiro para o projeto. Muitas vezes, Carlos Antônio corre João Pessoa e cidades vizinhas solicitando verba para um torneio ou mesmo pedindo ônibus para uma competição fora.
No mês de novembro, por exemplo, o desafio era conseguir levar a equipe para um campeonato de futsal em Tamandaré, no interior de Pernambuco. Entre uma corrida e outra levando os seus passageiros, Carlos Antônio vai atrás do apoio necessário. Recebe bem mais “não” do que “sim”. Mesmo assim, ele não desiste. E quando a ajuda não sai, a única saída é sentar com os pais dos garotos para pensarem em uma solução conjunta.
Carlos Antônio diz que sempre foi difícil tocar o projeto do Bairro São José. Mas neste ano a situação se agravou e mesmo tendo que sustentar seus dois filhos e a esposa, ele não desiste dos garotos do bairro. A ponto de muitas vezes tirar dinheiro do próprio bolso para o projeto.
– Independente da minha situação financeira, o projeto continua. Mas é lógico que é horrível não ter um lugar para treinar. Aqui temos que contar com o bom senso um do outro para poder utilizar a quadra. Além disto, nossas reuniões com os pais de alunos são nos bancos próximos da quadra, já que não temos uma sede para isto – lamentou.
Apesar da força de vontade, há momentos em que ele titubeia e pensa se vale a pena seguir em frente. Mas lembra de tudo que construiu e no futuro das crianças:
– Todas as noites, quando eu deito, sempre penso no que eu construí. No quanto foi difícil para chegar até aqui. Um dos motivos que me motivam a seguir em frente é quando eu chego na quadra e uma criança me abraça e diz que está feliz pela oportunidade. Quando diz, por exemplo, que conseguiu a doação de um tênis que vai lhe ajudar nos treinos. Isto me impede de desistir.
Andrey Correia, de 10 anos, é uma dessas crianças. Ele faz parte do projeto há dois anos e diz gostar muito do professor. O pai confirma. Alexandro Correia traz Andrey, outro filho e mais um amigo dos garotos de Cabedelo (município da Grande João Pessoa, que fica a 18km da quadra) duas vezes por semana. Todos de moto. Ele dá várias viagens por noite, mas diz que vale a pena.
– Depois dos treinos, Andrey melhorou em tudo. Estuda mais. Tira notas melhores. Mas infelizmente é um projeto que não tem ajuda de ninguém. A quadra que a gente joga já está cheia de buracos. Falta muita coisa, mas ele é esforçado. É por isso que todas as viagens que faço de moto por dia para trazer todos vale a pena – contou Alexandro.
O começo de tudo
Há três anos, Carlos Antônio se dividia entre os jogos na praça de Manaíra e o emprego de zelador em um dos prédios do bairro. Foi lá que ele conheceu o auditor fiscal Roberto Flávio, que na época era subsíndico do prédio, e o ajudou a legalizar a associação. Ao ver potencial no projeto e uma necessidade de ação social relacionada às crianças do São José, o morador quis contribuir. Na época, o projeto ainda engatinhava.
– Eu conheço Carlos Antônio desde que ele trabalhava no condomínio que eu moro e um dia ele me solicitou uma colaboração de caráter pessoal para o projeto. A minha ideia foi apresentar para ele uma ideia de associação. Pedi a ajuda de amigos e nós fizemos um estudo de legalização do projeto, conseguimos patrocínio e fizemos o registro cartorial em 6 de março de 2013. Posteriormente veio o ato de criação de um CNPJ e demos um corpo legal ao projeto – contou Roberto Flávio.
Hoje o projeto vai muito além do bairro São José, uma vez que admite garotos de outros bairros e até mesmo de cidades da Grande João Pessoa, como Bayeux e Cabedelo. Além disso, os garotos participam de competições dentro e fora da capital paraibana.
– A associação tem tomado a dimensão que se imaginava, mas obviamente falta apoio e recursos. Nós buscamos isso para se fortificar e permanecer ajudando. Porque é muito difícil fazer isto sem ajuda, principalmente para Carlos Antônio, que tira quase tudo do próprio bolso. Muitas vezes, eu vejo a hora ele não resistir e o processo ir todo por água abaixo – resumiu Roberto.
Notícia e Imagens: Hévilla Wanderley