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Mbappé, francês filho de pai camaronês, e Hakimi, marroquino nascido na Espanha: os dois símbolos da semifinal. Foto: Arte GE

Uma semifinal, duas seleções, mas várias nações em campo. A partida entre França e Marrocos, nesta quarta-feira, às 16h (de Brasília), é o retrato mais evidente da Copa do Mundo mais cosmopolita da história. O jogo, que decide quem pega a Argentina na decisão, confronta dois times e países moldados pela migração.

Nenhum dos 32 participantes do Mundial do Catar tem tantos jogadores nascidos em outros países quanto Marrocos: 14. Por outro lado, há 38 atletas originários da França que defenderam outras seleções na Copa, também um recorde.

No total, 137 convocados para a Copa do Mundo de 2022 não vestem a camisa do países em que nasceram. O cientista político Maurício Santoro, que é professor do Departamento do Relações Internacionais da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), detalha como a sociedade atual das duas nações do jogo desta quarta se definem pela migração.

– Essa semifinal tem um pano de fundo comum aos dois países, que é cidadania mais cosmopolita que foi construída desde o fim da Segunda Guerra, em 1945. Isso acompanha o surgimento de vários países na África do Norte que eram colônias francesas, como Marrocos, Tunísia e Argélia. No caso da França, resultou em aumento grande da migração oriunda dessas colônias, o que mudou composição da sociedade francesa, que é muito mais multicultural do que era 60 anos atrás – diz o professor.

Esse processo, porém, tem diferentes interpretações de seu significado e também desperta conflitos, como explica Santoro.

– Quando a seleção francesa vai bem, vira símbolo positivo da integração multicultural. Mas quando vai mal, acaba provocando acirramento das tensões com grupos conservadores na sociedade francesa que dizem que esses jogadores de origem árabe e africana não são franceses autênticos.

A Fifa permite que um atleta de até 21 anos atue por outra seleção mesmo que já tenha jogado nas categorias de base de sua nação de origem. Para isso, é preciso possuir cidadania desse país.

Jogadores que moraram em um país diferente por pelo menos cinco anos também podem atuar por outra seleção, como nos casos dos brasileiros Otávio e Matheus Nunes, que defendem Portugal.

Até mesmo quem já jogou pela equipe principal de um país pode mudar de seleção. Para isso, é preciso que tenham atuado em no máximo três partidas e com menos de 21 anos (desde que esses jogos não sejam de Copas do Mundo ou de torneios continentais, como Copa América e Eurocopa). Além disso, é necessário cumprir três anos de carência.

Marrocos: migração do técnico ao capitão

Além de jogadores nascidos em outros seis países diferentes, Marrocos conta com um técnico com dupla nacionalidade, Walid Regragui.

“Eu nasci na França e tenho dupla nacionalidade. Não estou super feliz por enfrentar a França amanhã, mas isso é futebol. Tenho que cumprir meu dever como técnico da seleção nacional”, declarou o treinador, na véspera da partida.

– Quanto aos jogadores, esta é a mensagem que lhes transmito. Nós não prestamos atenção a quem é nosso rival. Quando jogamos contra a Bélgica, também tínhamos dois cidadãos. A mensagem será sempre a mesma: jogamos pelo Marrocos, e estamos jogando um jogo de futebol. E é isso. Acho que o jogo vai ser uma festa para todos os franco-marroquinos.

O capitão da seleção africana, o zagueiro Romain Saiss , é nascido na França e naturalizado marroquino. O mesmo ocorre com os meias Amine Harit e Sofiane Boufal.

O tema da dupla nacionalidade da maioria dos jogadores dos Leões do Atlas não agrada a parte da população local, que vê nesse enfoque uma tentativa de diminuir os feitos do país.

– O mais importante para mim, e a mensagem que quero enviar, é que não quero que os jogadores que entram em nossas seleções sejam divididos em diferentes categorias. Jogadores que atuam no campeonato local, jogadores com dupla nacionalidade, jogadores de nossa academia… Quando você faz parte da equipe nacional, você é simplesmente marroquino – comentou o técnico Walid Regragui.

A França, e os dois lados da migração

Apenas o goleiro Mandanda nasceu em outro território

 No fluxo migratório da Copa do Mundo, nenhuma outra nação é tão influente quanto a França. O próprio elenco da atual campeã do mundo conta com 20 de seus 26 jogadores convocados para o Mundial com dupla nacionalidade. No entanto, apenas o goleiro Mandanda nasceu em outro território, na República Democrática do Congo.

O time do primeiro título mundial francês, de 1998, por exemplo, tinha quatro jogadores nascidos em outros países. Os 20 franceses com dupla nacionalidade da equipe de Didier Deschamps são de uma segunda geração descendente de imigrantes.

O goleiro Lloris, o lateral Pavard, os meio-campistas Rabiot e Veretout, e os atacantes Griezmann e Giroud são os únicos da equipe francesa que não tem uma segunda pátria. A França moderna é uma nação diversa. Multicultural. E está muito bem representada no Catar, como salienta o professor Maurício Santoro.

– A seleção acaba sendo uma representação da identidade cultural desses países. O que significa ser francês? O que significa ser espanhol? Por muito tempo, era ser branco e cristão. Hoje é um cenário multicultural. E a gente pode ter cidadãos desses países que preferem jogar por outros porque se identificam mais culturalmente com pátria dos meus pais, porque sofreu discriminação, ou só porque essa seleção oferece uma oportunidade melhor no futebol mesmo – analisa o acadêmico.

Como ressaltou Santoro, há o outro lado da migração. A França é a nação da Copa do Mundo com mais jogadores que defendem outros países. São 38 atletas espalhados por nove seleções que estiveram no Mundial: Tunísia, Senegal, Camarões, Gana, Marrocos, Catar, Portugal, Espanha e Alemanha.

Os franco-tunisianos eram maioria: são 10 jogadores nascidos em território francês que defenderam a equipe africana, que foi a única a bater a equipe de Didier Deschamps na Copa do Mundo.

Marrocos tem três atletas nascidos na França: Saïss, Harit e Boufal. A íntima relação histórica entre as duas nações, e de exploração por um dos lados, foi tema abordado com os personagens da partida. Mas o técnico Didier Deschamps preferiu não se manifestar sobre o tema.

– Nós conhecemos a História. Não acho que nós técnicos temos que mandar esse tipo de mensagem. Há muita paixão envolvida. Seja antes ou depois, deve continuar sendo uma partida de futebol, mesmo que haja uma história e muita paixão. Como atleta e técnico, gosto de ficar no meu lugar, e os jogadores também. É melhor assim.

Ministro do interior da França, Gérald Darmanin vai mobilizar 10 mil policiais na região de Paris para o jogo. Ele exaltou a partida como chance de celebrar a diversidade francesa e tentou diminuir a tensão de uma possível confusão nas ruas, como ocorreu na classificação marroquina diante de Portugal. Para ele, o resultado da semifinal não vai alterar o planejamento para uma eventual decisão da Copa do Mundo.

“Vamos chegar à final de qualquer maneira”, disse o ministro do interior da França.