Há mais de duas décadas, Alexandre Carlo e os companheiros da banda de reggae Natiruts fazem um pedido: “Deixa o menino jogar”. A música homônima integra o primeiro disco do grupo brasiliense de reggae, lançado em 1998. Ela fala de amor, de promessas e tece uma série de críticas sociais aos “homens de lá”, que têm medo de oferecer oportunidades ao “povo daqui”. Peço licença aos leitores e aos compositores, para reescrever o refrão: “deixa a menina jogar”.

Assim como na história contada através dos acordes da canção, em Lages há uma menina que tenta transformar a realidade em que está inserida. Aos 25 anos, Amanda Lyssa de Oliveira Crisóstomo é o símbolo do empoderamento da mulher no esporte.

Fom Conradi

Amanda Lyssa de Oliveira Crisóstomo é o símbolo do empoderamento da mulher no esporte. Foto: Fom Conradi

Eleita cinco vezes a melhor jogadora do mundo de futsal feminino, a jovem nascida em Fortaleza (CE) usa dos diversos títulos com a camisa da Seleção Brasileira e do Leoas da Serra, time de Lages, e da liderança para engajar mais pessoas na estruturação do esporte no país.

Ela abriu mão de, como muitas outras atletas, jogar na Europa para defender o ideal:

“Não me incomodo nem um pouco de receber menos e fazer a modalidade crescer no meu país. Isso me move muito mais do que dinheiro

A habilidade de Amandinha com a bola nos pés impressiona. A jogadora de 1,57m de altura esbanja talento e técnica. Há quem a compare ao craque Falcão, um dos melhores de todos os tempos da modalidade. Fã do camisa 12, ela não se importa com a comparação. E vai além, sem titubear:

– Sempre tem muita gente que se incomoda, quando a mulher é comparada a um homem, não me importo nem um pouco. Pra mim é motivo de orgulho.

A menina que começou a jogar bola na rua com os amigos, cresceu inspirando-se no pai e no tio. Atravessou o Brasil e em Santa Catarina trilhou o caminho para dominar o mundo. Essa trajetória a colocou nos holofotes e no ano passado virou estrela de um documentário. Agora, ela quer mais, quer maior valorização ao esporte.

Saiba mais na entrevista a seguir:

Quando foi a primeira vez que você pisou em uma quadra de futsal para jogar? Do que você melhor se recorda?

Jogo desde criancinha, desde meus oito, nove anos, perto da minha casa (no bairro Conjunto Ceará, em Fortaleza). Na verdade, não tenho muito o que lembrar. Eu praticamente brincava, brincava com os meus colegas, no meio da rua, e aquilo era magnífico, a minha maior diversão. Era a melhor brincadeira. Eu já dormia pensando o outro dia para jogar bola com os meus colegas, brincar. Com certeza, moveu a minha vida desde quando eu era criança.

Em quem você se inspirou para começar a jogar futsal?

No início eu sempre acompanhava muito o meu pai e o meu tio, que eles jogavam. Os dois sempre me levavam para os “racha”, como a gente chama em Fortaleza (CE). Eu estava sempre acompanhando eles, sempre assistindo. Eram os dois grandes caras que eu via e, “Nossa eu quero ser um jogador que nem eles”, eu falava assim. Quando a gente é criança, a gente se inspira em quem está mais perto da gente, que está mais próximo. Os dois eram dois caras que sempre me levaram para todo e qualquer lugar e são dois caras que fizeram me apaixonar pelo futebol.

E agora, quem é que te faz ser apaixonada pelo futsal?

Falcão, né? (Risos). Falcão é o cara que eu assistia na TV, e se tornou o maior de todos os tempos, né? Na TV, ele fazia todo mundo parar para assistir. Hoje o futsal é o Falcão, o Falcão é o futsal. Um não existe sem o outro. Um pertence ao outro. Onde quer que eu vou, as pessoas perguntam: “Ah, o futsal de Falcão?”. Eu digo sim. Aquilo ali já virou como se fosse que uma propriedade dele. O que é muito bacana, porque ele lutou muito para conseguir isso. O que ele faz dentro de quadra é único, com certeza não existirá outro Falcão.

Tive a oportunidade de conhecê-lo, como fã, inicialmente eu parecia boba. Mas depois foram acontecendo mais vezes e a relação que a gente tem é muito bacana hoje em dia. Ele me trata superbem, me ensina cada vez que a gente se encontra, me ensina muita coisa. É um cara que já é muito maduro e espero poder ter a amizade dele para aprender cada vez mais.

Hoje em dia é você quem serve de inspiração para muitas meninas. Como você lida com isso?

De forma inicial, não sei se eu queria isso para a minha vida. Eu recebia muitas mensagens, e ficava (me perguntando): “Poxa, por que está se tornando tão grande assim isso na minha vida?”. Aí, depois eu comecei a entender, a amadurecer, ver o que eu acho que é um plano de Deus para a minha vida e comecei a aceitar, digerir aquilo, porque, querendo ou não, quando você se torna espelho para alguém as suas atitudes, em qualquer ramo da sua vida, seja ela pessoal ou profissional, acabam se tornando muito visadas. Não sabia se eu queria isso.

Mas ao mesmo tempo Deus me mostrou que eu nasci pra isso. Fui aceitando, fui digerindo, fui cada vez tendo uma relação mais próxima com as pessoas, fui conversando e hoje é uma das coisas que eu mais amo.

Flávio Dilascio

Amandinha lidera a equipe do Leoas da Serra. Foto: Flávio Dilascio

Poder retribuir esse carinho, poder respondê-los, mostrar que tudo pode acontecer e os sonhos podem se realizar independente da faixa etária, independente da condição social. Cheguei ao time profissional aos 16 anos, fui eleita a melhor jogadora do mundo pela primeira vez aos 19. Então, vi que quebrando paradigmas, que nem todo mundo acreditava que seria possível e vou mostrando para as pessoas.

Poxa, saí do Nordeste. Muitas meninas de lá me mandam mensagens e perguntam: “Como que tu conseguiu?”. Cara, eu simplesmente não desisti. Simplesmente entrei com corpo e alma, e as coisas deram certo na minha vida. Sempre procuro mostrar para as pessoas a capacidade que elas têm para conseguir realizar os seus sonhos.

Como é a rotina, quando você está longe das quadras?

Essas são uma das férias mais movimentadas minha vida porque estou fazendo alguns eventos, fechando algumas palestras. É um projeto que iniciei agora em 2020. Vou para algumas cidades e acabo falando um pouco da minha história, das minhas vivências dentro do futsal. Então, estou viajando bastante. Mas, nas férias procuro descansar, ficar bastante com a minha família, fazer as coisas que eu gosto: ficar em casa, cozinhar, ir ao cinema, esse tipo de coisa. Ficar o máximo de tempo longe de bola, porque já passo o ano inteiro fazendo só aquilo, então tento me distanciar. Apesar de que dá saudade. Quando chega a época das férias, dá bastante saudade.

Você enfrenta muito preconceito por ser uma menina que joga futebol?

Olha, já enfrentei mais. Já sofri nas redes sociais, (com gente) dizendo que “lugar de mulher é na cozinha”, “cuidando do marido”.

Como você lida com esse preconceito?

Isso nunca me afetou, nunca foi parâmetro para eu querer parar de jogar bola, não me importo com esse tipo de opinião. Acredito que a gente só deve se importar com as críticas construtivas. Isso não é nem crítica, é um absurdo que muita gente fala e faz nas redes sociais Mas isso nunca me afetou, não. Porque sempre fui muito forte naquilo que eu queria, que eu sabia que era capaz, de não deixar a opinião das pessoas me influenciar.

Você deixou a casa dos pais aos 15 anos, para apostar no sonho de ser jogadora e se transferiu para Brusque, onde conquistou diversos títulos e começou a brilhar nas quadras Brasil a fora. Como foi esse processo, de atravessar o Brasil para lutar pelo sonho de se tornar uma jogadora profissional de futsal? Qual foi a reação da família?

Eu era uma adolescente, era tudo muito novo para mim, era uma menina querendo jogar bola. Não foi fácil, porque eu tive que abdicar de ver da minha família. Foram coisas que eu tive que aprender ao longo do caminho, mas quando você começa a viver assim, você começa a se acostumar, que você sabe onde quer chegar. Sabe qual é o seu sonho. E você sabe que para conquistar aquilo você tem que abdicar de muitas coisas, e uma das coisas é estar perto da sua família.

Ricardo Artifon

Amandinha foi uma das destaques do título da Seleção Brasileira no Grand Prix. Foto: Ricardo Artifon

Hoje, infelizmente, o futsal não te proporciona dar melhores condições para a sua família, trazê-los para perto de você. Mas é por isso que a gente luta, todos os dias.

Para que a modalidade mude e a gente possa viver ao invés de sobreviver, que a gente viva com a modalidade. Essa transição foi muito importante na minha vida, porque me fez amadurecer e tornar independente muito cedo. Cada dia, cada segundo, cada ano que eu vivi em Brusque era um aprendizado novo.

Muitas pessoas lhe comparam ao Falcão, devido a habilidade técnica e os dribles desconcertantes. Isso lhe incomoda? Serve como inspiração ou como pressão?

Isso na verdade me inspira, porque, poxa, ser comparada ao Falcão não é para qualquer um, né? Claro que eu não me vejo como ele, ele é único, como disse antes. Ele faz coisas que só ele tem capacidade de fazer. Mas, claro, que ao mesmo tempo muitas coisas que ele faz, eu tento fazer também, porque aí eu me torno cada vez mais diferente. Acredito que a gente se assemelha em algumas situações, mas nem chega perto. Ele faz coisas com a bola que pareciam impossível, e ele torna realidade.

Fico muito feliz. Não me incomoda nem um pouco, além de ele ser o meu ídolo. Não tem porque eu me incomodar com ele. Sempre tem muita gente que se incomoda, quando a mulher é comparada a um homem, não me importo nem um pouco. Pra mim é motivo de orgulho.

No ano passado, foi produzido um documentário sobre você e a carreira vitoriosa nas quadras. Como foi essa experiência?

Foi um documentário incrível, que foi produzido durante um ano. A equipe foi lá em Fortaleza, veio a Lages, acompanhou jogos, pegou depoimento de pessoas muito importantes na minha vida. Foi um documentário marcante para mim. Tentei agir naturalmente, como se eles não estivessem ali, eles queriam pegar as coisas mais naturais possíveis. Claro, que de repente você tem uma sombra, né? Mas foi bacana. Eu imaginava que eles estavam mostrando para as pessoas um pouco do que eu sou, das minhas dificuldades, das minhas decisões, da minha coisa de jogar e, principalmente, a minha modalidade. Ela iria aparecer da forma que eu queria, que eu desejava, através da TV.

No ano passado, por conta da Copa do Mundo de futebol feminino, o Brasil passou a prestar mais atenção à modalidade. Os clubes passaram a se estruturar e a temporada promete ter fortes emoções nos gramados. Não se vê esse mesmo tipo de movimento nas quadras. Por quê? O que falta para o futsal feminino passar a ter uma estrutura assim, com investimento de clubes populares e maior valorização das atletas?

Acredito que seja porque a confederação e a Conmebol se organizaram de uma forma que os clubes se obrigaram a ter. Então, o crescimento da modalidade é inevitável. Já o futsal não tem isso. Temos uma confederação que não é a CBF, ela é sozinha e acabou falindo, acabou não tendo recursos. E isso faz com que a modalidade seja ainda mais reduzida e desorganizada, que novos clubes não surjam, que os clubes acabem.

E quando você acredita que isso vai mudar? De que forma isso pode mudar?

A gente tem esperança. Como foi um ano muito vitorioso para o futsal feminino em 2019, com transmissões de jogos na TV, com o próprio documentário, que deu uma visibilidade incrível. Tem a esperança de o futsal se tornar CBF. São coisas que estão chegando para nós, que podem se tornar realidade e podem mudar a realidade do futsal feminino.

No ano passado, você afirmou em entrevista ao jornal “Extra” que negou propostas de clubes do exterior para não abandonar a modalidade. Valeu a pena? Você segue com esse posicionamento?

Sempre vale, porque tudo que mudou, tudo que senti, tudo que aconteceu na minha vida no ano de 2019, todas as minhas escolhas, que às vezes erradas, se tornam aprendizados. Gosto muito desse símbolo que me tornei para a modalidade, então fico feliz. Não me incomodo nem um pouco de receber menos e fazer a modalidade crescer no meu país. Isso me move muito mais do que dinheiro.

Você é jovem, tem 25 anos apenas e já foi eleita cinco vezes a melhor jogadora de futsal do mundo. Tem no currículo diversos títulos com clubes e com a Seleção Brasileira. Como atleta, o que lhe falta conquistar?

Falta a valorização do meu esporte. Como hoje me tornei espelho na modalidade, como hoje me tornei uma esperança para a modalidade, então acredito que eu posso conquistar isso também. 2019 já foi muito vitorioso, foi um ano em que todo mundo foi movido pelas conquistas que teve o futsal feminino, então fico muito feliz de poder representar dessa forma, poder cada vez me sentir mais feliz com o futsal. Claro que não é a forma ideal ainda, a gente está em uns 5%, mas acredito que se continuar por esses caminhos a gente tem mudanças e o crescimento ao longo dos anos que vão vir.